O artigo 305 do CTB aborda sobre
um crime polêmico: o de fuga do local de ocorrência de trânsito. A polêmica se
deve ao fato de que a lei pretendeu punir, criminalmente, aquele que se afasta
do local, com uma intenção específica: a de não ser responsabilizado, seja por
um crime cometido ou por uma eventual indenização que tenha de arcar, se for
considerado culpado pelo acontecimento fatídico (ou seja, pressupõe-se,
antecipadamente, que o condutor pode ser culpado e, por este motivo, deve
permanecer no local, para a devida apuração dos fatos).
No caso dos autos, o
condutor fugiu do local em que colidiu com outro veículo e foi condenado, com
base no dispositivo, a oito meses de detenção, pena substituída por restritiva
de direitos. No entanto, no julgamento de apelação, o Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul (TJ-RS) absolveu o réu. A corte gaúcha considerou
inconstitucional o artigo do CTB com o fundamento de que a simples presença no
local do acidente representaria violação da garantia de não autoincriminação,
uma vez que ninguém é obrigado a produzir provas contra si. Buscando a reforma
do acórdão do TJ-RS, o Ministério Público do Rio Grande do Sul interpôs o
recurso extraordinário ao Supremo.
“Art. 305. Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe pode ser atribuída.
Pena: detenção, de seis meses a um ano, ou multa.”
Quanto à responsabilidade penal, argumentava-se que o dispositivo violava
a presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal –
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória”) e o direito de não-incriminação, que se estabelece tanto no
direito constitucional do preso, em se manter calado (artigo 5º, inciso LXIII,
da CF – “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de
permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de
advogado”), quanto na garantia internacional de não ser obrigado a depor contra
si mesmo, quando for acusado de um delito (artigo 8º, inciso 2, letra ‘g’ da
Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de São José, da Costa Rica –
“Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência,
enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa
tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) direito
de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada").
O relator do caso, ministro
Luiz Fux, apresentou em seu voto que o direito à não autoincriminação e ao
silêncio, previstos no artigo 5° da Constituição Federal, não deve ser
interpretado como um direito do suspeito, acusado ou réu, de não participar de
medidas de cunho probatório, observou:
"O princípio da proporcionalidade propugna pela defesa dos direitos fundamentais sempre. E a responsabilização penal de quem foge do local do acidente no Código de Trânsito tem apoio constitucional" (...)“Como uma sociedade justa e solidária pode admitir que alguém fuja do local do acidente para não se incriminar?”
Votaram nesse sentido, além do relator ministro Luiz Fux, os ministros Alexandre
de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ricardo
Lewandowski. Foram vencidos Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Dias
Toffoli.
O ministro Alexandre de Moraes afirmou que existe “uma epidemia de acidentes de trânsito no Brasil” e elogiou o artigo do Código de Trânsito em discussão: “O direito ao silêncio não significa o direito de recusa de participar do devido processo legal”.
O ministro Luís Roberto Barroso afirmou que é necessário pensar qual
recado será passado para a sociedade com a decisão. “Deve o Estado passar a
mensagem que quem se envolve num acidente pode fugir do local, deixando para
trás uma vítima? Entendo que não”, afirmou.
O ministro Barroso foi adiante, afirmando ainda que a
permanência no local deve, inclusive, servir para atenuar uma eventual pena:
"A permanência no local do delito é imunizada de qualquer intervenção penal sobre a pessoa para dar incentivo a esta prática solidária e minimamente humana de socorrer alguém. E o ato de socorrer, diante de fato de trânsito, deve ser atenuante relevante numa demonstração de culpabilidade”.
O ministro Gilmar Mendes foi o primeiro a divergir do ministro relator
Luiz Fux no sentido do desprovimento do recurso. Segundo Mendes, o STF já
assentou que o direito de permanecer calado, previsto na Constituição, deve ser
interpretado de modo amplo, e não literal. A Corte já afirmou que viola tal
direito a obrigação de fornecimento de padrões grafotécnicos, de participação
em reconstituição de crime e de submissão ao exame de alcoolemia, disse:
“Não calha aqui o argumento de que, permanecendo em silêncio, não estaria a produzir prova contra si. A comprovação da conduta criminosa pressupõe a configuração de autoria e de materialidade, e a permanência do imputado no local do crime inquestionavelmente contribui para a comprovação da autoria, assentando o seu envolvimento com o fato em análise potencialmente criminoso”.
A decisão do STF seguiu a
mesma concepção da procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Ela se
manifestou a favor da constitucionalidade da regra durante a sessão do STF e
defendeu que o artigo do CTB não representa autoincriminação por parte do
condutor do veículo envolvido em um acidente. Para
a PGR, o Artigo 305 incentiva a responsabilidade solidária e tem impacto positivo
na redução de acidentes. Desta forma, concluiu:
“Ao criminalizar a conduta, o legislador quis sinalizar que o condutor tem responsabilidade solidária na cena do acidente para socorrer as vítimas, para não desfazer a cena do acidente, para estar ali na chegada da autoridade de trânsito ou de saúde”.
O relator entendeu que a permanência do condutor no local da ocorrência
tem como objetivo facilitar a apuração judicial do ocorrido e não se destina a
criação de prova, porquanto permanece a possibilidade de manutenção do direito
ao silêncio.
Ao final, quando discutida a redação da tese da repercussão geral, o
Ministro Lewandowski e a Ministra Carmen Lucia ponderaram sobre a necessidade
de se incluir, a exemplo do que consta do artigo 304 do CTB (omissão de
socorro), a excepcionalidade das situações em que o condutor se encontra em
situação de fragilidade ou de própria vítima.
Agora teremos mais segurança jurídica, haja vista que
vários Tribunais (SP, RS, entre outros), em sede de controle difuso, declararam
a inconstitucionalidade do citado dispositivo, com base no argumento da
violação do direito ao silêncio e a garantia contra a autoincriminação.
Clóvis Júnior tem 23 anos, é advogado com OAB número 19.009 da seccional do Maranhão. Graduou-se em 2017 pela Universidade Ceuma. Apresentou monografia cujo o tema foi "ATIVISMO JUDICIAL: CHEGAMOS A UMA NOVA ERA, A DA DITADURA DO PODER JUDICIÁRIO". Atualmente cursa a pós graduação Direito Público com ênfase em Gestão Pública pelo Damásio Educacional. Facebook e Instagram: cloviiisjuniior.